Óbidos, 8 de Julho de 2024
Xavier Rivera
A pequena vila medieval de Óbidos, em Portugal, que conserva intactas todas as suas muralhas e uma parte considerável do seu castelo, acolhe, além dos seus alegres turistas, várias atividades culturais, sendo a mais destacada a Semana Internacional de Piano (SIPO), ativa desde 1996. Muitos pianistas participaram desta iniciativa através de uma fórmula de "masterclass", querida por Alfred Brendel, na qual os estudantes apresentam as suas interpretações, sucessivamente, a diferentes artistas consagrados. Este modelo, um verdadeiro luxo, procura evitar o dogmatismo que um curso magistral poderia gerar e permite aos jovens intérpretes refletirem sobre os diversos critérios que podem servir honestamente uma mesma composição musical. Entre os nomes ilustres que participaram nestes cursos, destacam-se Paul Badura-Skoda (um habitué até aos seus últimos dias...), Dmitri Bashirov, Helena Costa, Jörg Demus, Vitaly Margulis, Luíz de Moura Castro, Mikhaïl Pethukov, Pierre Réach, Boris Bloch, Boris Berman, Josep Colom, Artur Pizarro, Eugen Indjic. Em suma, a elite dos pianistas dos séculos XX e XXI.
As aulas são pontuadas pelas atuações dos professores, e ontem pudemos assistir à de Manuela Gouveia, diretora artística e alma tutelar desta imprescindível iniciativa.
Partilhando com a sua ilustre compatriota Maria João Pires uma aparência frágil, discreta e marcada pela humildade, Gouveia logo a contradiz com a intensidade afetiva da sua performance. Mas, enquanto Pires nos encanta com o seu fraseado mágico e as suas fulgurações emocionais, Gouveia constrói desde o início um cenário onde as linhas estruturais são traçadas de forma clara e límpida, apenas para nos assaltar depois com as questões mais heterogéneas: porque esta modulação surpreendente, porque este contraponto arrojado, porque esta acentuação incisiva? Tudo isso numa riqueza de cores e numa sonoridade hipnotizante que transforma o piano numa miríade de instrumentos variados, de vozes diversas e vibrantes. O seu programa incluiu obras que sugerem enigma e especulação composicional.
Desde as "Variações em Fá" de Haydn, escritas quando o compositor descobriu a manufatura inglesa de pianos Longman & Broderip e Broadwood, cujas ressonâncias ricas prefiguravam o piano romântico em contraste com a leveza mecânica e a sonoridade aérea dos pianos vienenses, o som desdobra-se em vagas de uma riqueza incomum, com uma declamação de uma clareza e transparência excecionais. Seguiram-se as "Seis Peças para Piano, op. 19" de Arnold Schönberg, escritas em 1913 com o objetivo de evitar qualquer "pathos". A pianista transporta-nos através de seis estados de espírito condensados: desde o grito dilacerante a um breve momento de felicidade, passando por efusões líricas contidas, mas não menos intensas.
Este diálogo constante com o pensamento dos compositores e este questionamento das convicções - ou convenções - interpretativas permitiram-nos ouvir ontem obras exaustivamente tocadas sob uma nova perspetiva, como se fossem improvisações geniais. Ecoaram qualidades e criatividade reminiscentes das improvisações de Beethoven. Ontem, Gouveia parecia também improvisar, tal a liberdade que atingiu como intérprete. Ao ouvi-la nas variações da Sonata op. 109, não pude deixar de recordar a descrição genial que Thomas Mann faz no "Doktor Faustus" das variações do opus 111 de Beethoven, onde o ouvinte é levado a um estado segundo, onde sonho e realidade se confundem e onde o imaginário não encontra limites.
A "Suite op. 14" de Béla Bartók encerrou uma noite difícil de esquecer. Escrita em 1916, em plena Primeira Guerra Mundial, também procura evitar os excessos do pós-romantismo, explorando uma imaginação rítmica e melódica exuberante. Bartók afirmou que a obra não contém elementos folclóricos, apesar das importantes pesquisas que conduzia na mesma época. Entre as suas obras, era a que mais gostava de interpretar em concerto. Gouveia confirmou, mais uma vez, a riqueza inesgotável da sua paleta expressiva. Uma noite que se pode resumir como a confissão mais sincera de uma musicista sem igual.